






A Gênese
Embora aceitem como oficial, nos tempos atuais é de conhecimento de muitos que, o futebol no Brasil, não tem apenas uma origem, e sim muitas. As dimensões continentais do nosso território, além da falta de comunicação entre os Estados, levou o esporte a ter, nas várias regiões do Brasil, diversos introdutores e pioneiros. Charles Miller, em São Paulo; Oscar Cox, Thomas Donohoe e outros, no Rio de Janeiro; Guilherme de Aquino, em Pernambuco; Johannes Minerman e Richard Woelckers, no Rio Grande do Sul; Vito Serpa, em Minas Gerais, entre outros.
O Pioneirismo de Miller é aceito também pelo fato de este não só ter introduzido o esporte, como também as suas regras e bolas oficiais, além de ter criado o primeiro campeonato organizado do País: em 1902, do qual foi primeiro artilheiro, campeão e que resiste até os nossos dias: o Campeonato Paulista. No entanto, mesmo a pequenas distâncias da Capital Paulista, podemos documentar outra experiência pioneira com o futebol. Porém, se faz necessário compreender como se organizava o espaço geográfico de nossa região neste período.
Em fins do Século XIX, mais precisamente até o ano de 1889, toda a região compreendida atualmente pelos sete municípios que compõem o Grande ABC (Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra), ainda eram território pertencente ao Município de São Paulo. Porém, em 12 de Março de 1889, através da lei 38, sancionada pelo Presidente da Província de São Paulo, Pedro Vicente de Azevedo, é criado o Município de São Bernardo, abrangendo todas as atuais cidades do ABC e que tinha por “centro”, a Freguesia de São Bernardo, atual São Bernardo do Campo.
A separação da Capital era um pleito antigo, que ganhou força graças a chegada dos imigrantes (a partir de 1887) e da implantação da ferrovia (São Paulo Railway, em 1867). O Município de São Bernardo nasceu com os seguintes bairros/povoações: Estação São Bernardo (atual Santo André), São Caetano (atual S.Caetano do Sul), Vila Conceição (atual Diadema), Pilar (atual Mauá), Ribeirão Pires, Rio Grande (atual Rio Grande da Serra) e Alto da Serra (atual Paranapiacaba). Embora territorialmente pertencente ao Município de São Bernardo, o bairro do Alto da Serra (atual Paranapiacaba), mantinha total independência administrativa, pois era uma vila primordialmente particular, de propriedade da São Paulo Railway. Ela surgiu com a abertura da ferrovia, em 1862, quando a “Parte Alta” da vila passou a ser ocupada por operários da construção, comerciantes, e toda as pessoas necessárias da época para construir e operar o trecho. Quando a ferrovia começou as obras de duplicação de sua linha, entre 1896 e 1901, a direção da São Paulo Railway resolveu regularizar toda a povoação, que mais parecia um acampamento provisório. Para atrair trabalhadores, a nova vila teria toda a comodidade possível: água encanada, ruas calçadas, escolas, hospitais, fornecimento de alimentos, além das próprias habitações.
Essa vila, cujos estudos preliminares nasceram em 1890, ligam uma origem do futebol à São Bernardo: o plano da Vila já possuía um campo de futebol, inaugurado antes da primeira partida oficial organizada por Charles Miller na Capital (que também contou com funcionários ingleses, em sua maioria, da própria São Paulo Railway). Presume-se que aí, em território originalmente de São Bernardo, é que se tenha disputado uma das primeiras partidas de futebol em solo brasileiro. O Campo, curiosamente, existe até hoje. Foi usado pelo Serrano FC (fundado em 1903), que em 1936 se fundiu com a Sociedade Recreativa Lyra da Serra (fundada em 1900) dando origem ao União Lyra Serrano, que reformou o velho campo e o dotou de arquibancadas de madeira, em 1938.
O Clube União Lyra Serrano existe até hoje, sua sede é dos pontos turísticos mais conhecidos da Vila de Paranapiacaba (hoje em território do Município de Santo André – criado apenas em 1938). A
agremiação é reconhecidamente pioneira no ABC, praticando o futebol desde 1903, jamais tendo se profissionalizado.
Mesmo com o estabelecimento de operários ingleses e da prática do futebol dentro do Município, por conta do já citado isolamento e independência da vila ferroviária, o futebol chegou aos núcleos urbanos da cidade por outros meios. Os próprios imigrantes, operários das diversas fábricas da região (instaladas principalmente nos, na época, bairros de São Caetano e da Estação, atual Santo André, mais próximos à ferrovia) já o praticava sem muitas regras estabelecidas.
Foi a atividade fabril e a concentração dos imigrantes nos núcleos urbanos da região, substituindo a esparsa atividade rural dentro das povoações da cidade, predominante desde o estabelecimento dos núcleos coloniais de São Caetano e de São Bernardo, em 1887, que culminou no primeiro grande surto de criação de clubes em nossa região. No Bairro da Estação, maior que a própria sede pela já citada proximidade da ferrovia, surgem o Primeiro de Maio FC (1915) e o
Corinthians FC (1912). Em São Caetano, nasce o São Caetano EC (1914); em Ribeirão Pires, o Ribeirão Pires FC (1917) e, como não poderia deixar de ser, surgem a AA São Bernardo e o Internacional FC, ambos de 1917, em São Bernardo.
O traço em comum entre todos os times é sua origem operária. A criação de todos eles e o fato de o futebol ter se espalhado por todo o vasto território do antigo município, reflete o movimento de popularização do esporte, antes restrito as elites, na Capital – e distantes dos núcleos operários e suburbanos – caso de São Bernardo. Além destas equipes, mais estruturadas e organizadas, cada pequeno bairro ou lugarejo também criava seu próprio time. Sempre com nomes ligados as suas comunidades, causas ou colônias: “estourava” o futebol “de várzea” dentro e fora de São Bernardo. Em nossa cidade, times de existência efêmera se enfrentavam nos mais diversos terrenos convertidos em campos.
Na pequena São Bernardo da época – 71° cidade “mais populosa” do Estado em 1915, contando com apenas 19.668 habitantes – espaço para estes campos, era o que não faltava. E foi justamente o extenso território, a baixa população, o isolamento entre os bairros e a grande quantidade de times criados que acabou levando as duas equipes mais organizadas da Freguesia de São Bernardo ao fim, mas isso já é assunto para o próximo capítulo da nossa história.
Raízes
Como já dito, o futebol chegou até Freguesia de São Bernardo, centro do outrora imenso Município de São Bernardo em 1917, com a fundação de duas agremiações: a Associação Athlética São Bernardo e o Internacional Football Club. O Surgimento dos dois clubes seguiu a tendência local: de popularização do futebol entre as classes operárias, e claro, com a participação maciça do operariado em ambas as associações. O Internacional foi, inclusive, fundado pelo empresário Bortolo Basso, filho de João Basso, um dos pioneiros da indústria moveleira da cidade. Bortolo, que depois seria sócio do Bar Expresso, o mais famoso ponto de encontro da cidade, também foi um dos membros da Associação Amigos de São Bernardo, que foi a principal responsável pela recuperação da autonomia da cidade como município, em 1944, além de um entusiasta do futebol.
Já a Associação Atlética São Bernardo foi fundada seguindo suas agremiações coirmãs dos bairros e distritos vizinhos. Enquanto o Internacional era quase exclusivamente composto por operários da Fábrica de Móveis Irmãos Basso e patrocinado por esta, a “Associação Athlética”, como era chamada, tinha entre suas fileiras representantes de praticamente todos os estabelecimentos fabris e atividades econômicas desenvolvidas na cidade. Possuía um caráter de clube mais aberto e associativo, objetivava representar São Bernardo e buscava até mesmo constituir seu patrimônio: foi a primeira equipe da cidade a ter um campo de futebol, localizado na Rua Marechal Deodoro, em área pertencente ao Sr. Ítalo Setti. O clube inclusive negociou a compra da área com o proprietário, um grande, senão o maior benemérito da história de São Bernardo do Campo.
A área foi negociada por 7$000 (sete contos de réis), divididos em prestações. Apenas a última parcela deixou de ser paga pela AASB. Mesmo assim, simpático a ideia do clube, Ítalo deixou que a AASB seguisse usando o campo, situação que perdurou por muitos anos mais. Criadas no mesmo ano, as duas equipes desenvolveram entre si grande rivalidade. A cada partida, uma queria se impor a outra, com ambas buscando o posto de “representante” da freguesia de São Bernardo. Em 1922, a Associação Athlética enfrentou o Internacional mais uma vez. A goleada aplicada pela AASB foi tão acachapante que, diante da vergonha pelo “revés”, Bortolo resolve acabar com o time e consequentemente com o apoio da fábrica ao Internacional, que sem recursos, não sobrevive. A festa pela goleada sobre o rival durou pouco para os jogadores e sócios da AASB: sem o Internacional e ainda muito abaixo dos mais bem estruturados clubes dos Distritos de Santo André (criado em 1910) e de São Caetano (criado em 1896) , o clube perde a sua razão, os sócios se desligam, e o fim da primeira equipe organizada da cidade, é decretado.
Por ironia, no mesmo ano do fim do rival, 1922. Em 1920, São Bernardo, apenas a porção que atualmente constitui a cidade de São Bernardo do Campo, possuía meros 6.066 habitantes. Poucos para motivar a existência de duas equipes. Com a freguesia dividida entre AASB e Internacional, as forças também se dividiam, coisa que tornou ambas “freguesas” das equipes da atual Santo André, fato que gerava uma grandiosa e crescente rivalidade, também motivada pelas questões que envolviam a política e principalmente a geografia da velha cidade: Santo André já queria a sua soberania sobre o governo municipal. Já era maior, e contava, no mesmo período, com 7.347 habitantes, superando a sede não só nisso, mas também em rendas com a indústria e o comércio. Enquanto as margens da ferrovia deram lugar a grandes empresas, São Bernardo, longe de sua estação e da própria linha férrea (8 quilômetros), seguia com as suas velhas indústrias de móveis e tecelagens, quase todas empresas de cunho familiar. Além disso, a característica urbana do Bairro da Estação, depois Distrito de Santo André era muito mais marcante, enquanto na velha freguesia de S. Bernardo, então estacionada no tempo, a característica rural ainda
prevalecia.
Sem suas equipes mais fortes, o futebol de São Bernardo fica resumido a dezenas de times amadores, que faziam a festa da população da freguesia e também das respectivas colônias (Jardim América e XX de Setembro eram algumas deste período). Entre 1920 e 1928, os times de Santo André e São Caetano crescem e passam a disputar as divisões inferiores do Campeonato Paulista (da APEA). São Bernardo fica para trás. Sem representantes, o maior evento do futebol é realizado nos feriados do Dia do Trabalho, 1 de Maio, uma data essencialmente operária. Nela, a cidade se dividia em duas: os que moravam do lado “de cima” da freguesia, e os que moravam no lado “de baixo”. Os “de cima”, viviam no trecho da Rua Marechal Deodoro (e adjacentes) entre a Praça da Matriz e o atual Paço Municipal. Já os “de baixo”, viviam na porção da freguesia que estava “pra baixo” da Praça da Matriz, em direção ao fim da rua e ao atual Ferrazópolis. Os “de cima” e os “de baixo” montavam duas equipes, que se enfrentavam por um troféu no velho campo outrora ocupado pela AA São Bernardo, sempre no citado feriado. A divisão não tinha nenhum outro objetivo senão o de formar duas equipes que pudessem se enfrentar. Após o dia do trabalho de 1927, observando a movimentação e o entusiasmo gerado pelo enfrentamento, Dante Setti tem a ideia de formar novamente não duas, mas apenas uma equipe que, somando forças, pudesse novamente representar a Freguesia de São Bernardo no futebol, e principalmente, pudesse
fazer frente aos vizinhos.